segunda-feira, 29 de junho de 2009

Holocausto

Para além de uma análise comparativa, esta resenha tem como escopo estabelecer um diálogo, ainda que breve, sobre a obra de Pimo Levi “É isto um homem?” e o documentário “Noite e Neblina” de Alain Resnais.
Ambas as obras tratam do tema Holocausto, com peculiaridades próprias e, até mesmo, em alguns momentos, com ideias distintas.
Primeiramente, porque o livro de Levi é mais do que um testemunho, trata-se de uma experiência de vida. O autor vivenciou a realidade de um campo de concentração, já no final da Segunda Grande Guerra. Abordando detalhes, Levi invade a memória do leitor com descrições que podem causar, em muitos, verdadeiros arrepios.
Já a obra de Resnais, muito embora, a realidade do campo de concentração esteja longe de ser um cenário de paz e tranquilidade, o diretor consegue trazer ao espectador um imaginário muito próximo desse contexto. Isso porque Resnais estabelece um paralelo entre drásticas imagens do campo em plena atividade e desativado. Quando ausente de sua antiga função, o campo lembra uma fazenda em ruínas. No entanto, é a partir da exibição de imagens do cotidiano do campo, quando ativo, é que a assistência entra em contato com a triste realidade do Holocausto.
Sendo assim, é importante ressaltar duas características deveras relevantes sobre as obras em foco. Como pode-se perceber, a palavra Holocausto, em nenhum momento é utilizada. Tal terminologia, à época, ainda não era uma referência para as vítimas do Nazismo.
Além disso, diferentemente de Levi, Resnais procura não focar diretamente os judeus, ao mostrar a realidade do campo. O diretor preocupa-se em destacar o sujeito em si, expondo que não só judeus foram vítimas das tropas SS germânicas.
Nesse ponto, Levi também apresenta ao leitor, de maneira mais superficial, a grande variedade de pessoas que estavam sujeitas ao preconceito nazista. Em espectro que ultrapassava o anti-semitismo, criminosos, políticos, deficientes físicos, homossexuais e negros também foram alvo do nazismo.
Por conseguinte, diante de uma variedade de “raças” no campo, havia uma lógica hierárquica que as diferenciava. Junto às roupas dos refugiados eram afixadas as respectivas definições. Triângulos de cores distintas costurados aos uniformes, além da numeração tatuada ao corpo, distinguiam os presos.
Ademais, o seres humanos ali confinados deixavam de ser indivíduo, perdendo suas próprias identidades, sendo resumidos a um mero número, ou praticamente nada.
Essa destituição da personalidade humana retrata toda a lógica da existência de campos de concentração. É preciso ter incrustado em si uma ideologia muito forte, ao ponto de conseguir abster-se de qualquer piedade ou compaixão pelo próximo, para que qualquer cidadão, em pleno domínio de suas faculdades, possa assentir com o funcionamento de um campo de concentração.
Dentro desse imaginário, lentamente lapidado na memória do alemão nazista, é que foi possível computar tantas mortes, em tão curto período. Ao apontar o judeu como inferior, raça espúria, que deve ser subjugada e, até mesmo, dizimada, é que se alcança esse objetivo mórbido.
Diante disso, reduzindo-se aqueles homens e mulheres praticamente a pó, permitindo que padecessem de fome, sede e frio, deixou-se de enxergar um ser humano igual a si, para se perceber uma “coisa” inferior. São nestas cenas de “Noite e Neblina”, somadas à narrativa descritiva de Levi, que se constrói ao menos uma idéia do que pode ser a realidade do campo.
Em muitos momentos, o espectador se percebe violentado por imagens de tanta brutalidade. Talvez, pior do que vê-las, seja buscar, no fundo de seu âmago, uma idéia do que poderia ser a vida de Levi naquele ambiente tão lúgubre.
Dessa forma, são muitos os momentos em que o leitor se questiona e é questionado pelo autor sobre moral e ética. É possível que esses valores existam em contexto social primitivo? Tanto Levi como Resnais mostram que a permissividade e as atitudes amorais grassam, quando o ser humano se encontra na irracionalidade.
Na disputa pela sobrevivência, valores morais e éticos são ignorados, mesmo que inconscientemente. Desnecessário dizer que havia o mínimo sentimento fraternal dentre os presos, mas eles se confrontavam, em muitos momentos, com a necessidade de lutar pela vida.
Nesse ponto, Levi é bastante categórico ao esboçar um sentimento de revolta sobre os Kappos. Estes, também prisioneiros, eram designados para manter a ordem em cada Kommando específico. No geral, não eram judeus, a “raça” considerada mais baixa dentre as outras. Mas, normalmente eram criminosos ou políticos.
Desse modo, ao colaborarem com os nazistas, delatando os infratores e, até mesmo, violentando os demais presos, os Kappos tinham prestígio junto aos SS. Portanto, desfrutavam de regalias, tais como quarto individual, ração majorada, acesso a pequenos utensílios raros no campo — colher, luvas, sabão etc.
Por conseguinte, inserido nesse contexto de privilégios, surge um mercado interno de contrabando, no qual a moeda de troca é, na maioria dos casos, o pão. Havia um verdadeiro escambo nos campos, onde trocava-se tudo. Prisioneiros abriam mão de sua ração para obter objetos úteis e, praticamente, indispensáveis à sobrevivência.
Dessa forma, enclausurados em um mundo à parte da realidade, os prisioneiros dos campos criavam para si um ambiente próprio, repleto de situações que refletiam a luta pela sobrevivência. Por isso, talvez, Resnais destaca o mundo à parte existente nos campos. Ali era possível encontrar um hospital, bordel e, inclusive, uma prisão, por mais absurdo que pareça, já que o conceito do campo, em si, é de cárcere.
Em tese, conclui-se que, apesar das exaustivas tentativas de se obter uma descrição ou uma discussão sobre o Holocausto, os limites da verbalização cerceiam os autores, posto que palavras jamais conseguirão descrever o que realmente aconteceu no interior daqueles ambientes mórbidos e cercados por arames farpados.
Nem mesmo aqueles que viveram essas experiências ou as imagens registradas do dia-a-dia dos campos de concentração seriam capazes de esboçar as agruras a que tantos homens e mulheres foram expostos.
Fica portanto, apenas, a questão que jamais se calará: de quem foi a culpa por tudo isso? Resnais ressalta essa pergunta, mas, como todos, não consegue respondê-la. “Je ne suis pas responsable”, dizem eles. Então, pois , restam apenas as tristes lembranças que não devem ser esquecidas, para que sirvam de exemplo à humanidade e impeçam que tais situações venham a se repetir.