segunda-feira, 26 de julho de 2010

2. O Sistema Militar Corporativo Português e as Reformas Pombalinas

A dimensão corporativista caracterizava a estrutura social do Antigo Regime, em que o poder régio se distribuía, originalmente, pelos centros do poder local existentes em cada comunidade. Tais centros consistiam-se nos principais agentes responsáveis pelos seus ordenamentos político-administrativos. Nesse caso, era importante compatibilizar as jurisdições locais, respeitadas em suas particularidades, poderes e direitos, com a jurisdição real.
Segundo a concepção corporativista, a sociedade era entendida como um organismo hierárquico, com seu funcionamento simbolicamente comparado ao corpo humano, necessitando, portanto, da total e irrestrita integração dos pés, o pobres, à cabeça, o Rei.
O poder central, a Coroa, concebido como instância superior, representava a cabeça e cabia a ele, portanto, garantir a harmonia do todo e zelar pela sua conservação. Mas não lhe cabe, em contrapartida, chamar a si todas a funções dos membros.#
Dessa forma, o poder real, ao utilizar-se dos poderes locais como força intermediária para fazer sentir sua ação sobre a população, deveria, em contrapartida, aceitar as regras e os usos locais tornadas, desse modo, fundamentais para o exercício do poder real.
Outrossim, essa concepção aplicada à estrutura militar fornece, portanto, um sistema entendido como uma trama articulada de relações mútuas entre diversos corpos militares. Esta articulação não pressupunha perda de autonomia, nem tampouco de homogeneidade.
Desse modo, o comandante do corpo militar assumiria o papel de cabeça; os oficiais, sargentos, cabos e soldados, os membros. Não diferente do conceito corporativista luso onde o Poder era, por natureza, repartido; e, numa sociedade bem governada, esta partilha natural deveria traduzir-se na autonomia político-jurídica dos corpos sociais, embora essa autonomia não devesse destruir sua articulação natural - entre a cabeça e a mão deve existir o ombro e o braço, entre o soberano e os oficiais executivos deve existir instâncias intermédias. A função da cabeça não é, pois, a de destruir a autonomia de cada corpo social, mas a de, por um lado, representar externamente a unidade do corpo e, por outro, manter a harmonia entre todos os membros.
De tal forma que, a importância dos corpos militares na América Portuguesa foi destacada pelo Secretário de Estado e Negócios da Marinha e dos Domínios Ultramarinos Martinho de Melo e Castro

Primeiro, o pequeno continente de Portugal tendo braços muito extensos, muitos distantes e muito separados uns dos outros, quais são meus domínios ultramarinos nas quatro partes do mundo, não pode ter meios nem forças com que s defenda a si próprio, e acuda ao mesmo tempo a prevenção e segurança de cada um deles; segundo, que nenhuma potência do universo por mais formidável que seja, pode, nem intentou até agora defender as suas colônias com as únicas forças do seu próprio continente; terceiro, que é único meio que até agora se tem descoberto, e praticado para ocorrer a sobredita impossibilidade foi o de fazer servir as mesmas colônia para a própria, e natural defesa delas: E na inteligência deste inalterável princípio, as principais forças que hão de defender o Brasil são as do mesmo Brasil.


Partindo, então, das instruções de Martinho de Melo e Castro, pode-se compreender melhor a lógica de um sistema corporativo onde as inúmeras forças presentes nas Colônias agiriam de forma conjunta com o objetivo único da defesa de seu território.
Assim a denominação de corpo militar se aplicava à reunião de “gente da guerra” , independente da arma a que pertencia, seja de artilharia, infantaria ou cavalaria. Este termo não se restringia somente às tropas regulares e pagas, mas também às auxiliares e ordenanças e as relações estabelecidas no interior desse conjunto das partes envolvidas.
Nesse ponto, é possível considerar que o Ultramar não copiou servilmente as legislações metropolitanas. Muito embora as tenha recebido, procurou-se adaptá-las as realidades locais, o que possibilitou o sistema administrativo apresentar várias fórmulas de acordo com a latitude e as potenciabilidades econômicas e demográficas dos domínios.#
Assim sendo, se o sistema administrativo metropolitano forneceu o modelo das instituições a serem estabelecidas nas províncias ultramarinas, por outro, a necessidade de intervenção local obrigou as diferenciações da ação política, fazendo com que o modelo originário fosse inevitavelmente modificado, e enriquecido com a experiência proveniente da vida local.
Em contrapartida, é a partir da segunda metade do século XVIII, em especial, com a presença do Marquês de Pombal no governo português, que essa estrutura muda em sua concepção e prática de poder político.
Anteriormente, como já foi citado, a natureza do poder real encontrava-se na comunidade, possuindo caráter corporativista. O que se percebeu a partir da segunda metade do século XVIII foi a transferência desse eixo para voluntarista, onde o poder político é concebido diretamente por Deus ao Rei e não mais pela comunidade.
Pode-se destacar uma nova perspectiva de governo que modificou todo o quadro político e social do Estado português. A partir do reinado de D. José primeiro, na segunda metade do século XVIII, atingiu-se um individualismo na administração do Império lusitano, tal qual Antônio Manuel Hespanha destacou


O individualismo – e o contratualismo que daí decorre – pôde dar origem a vários tipos de regime, por vezes, radicalmente diferentes quanto à maneira de entender as relações entre cidadãos e poder.
Nuns casos, o contratualismo veio a legitimar principados absolutos – como as várias manifestações de despotismo esclarecido típicas da segunda metade do século XVIII – por se entender que, no pacto social, os cidadãos tinham transferido todos os seus poderes originários para os governantes (contratualismo absolutista), ficando o príncipe livre de qualquer sujeição ou limite.


Assim sendo, foi de interesse de Pombal reformular, inclusive, o quadro de integrantes da administração do Império marítimo português. Era, uma mudança dos integrantes da Corte, de modo a colocar em franco andamento as reformas destinadas a alavancar o Reino português política e economicamente. Essa mudança na hierarquia dos principais nobres lusos era uma tentativa política portuguesa de retirar de Portugal a situação de segunda categoria em relações aos reinos europeus tidos como potências.#
Essa ação centralizadora da Coroa, refletiu diretamente no corpo militar que constituía boa parte da fidalguia portuguesa. Submeter a nobreza era, também, uma forma de assumir o controle sobre as forças militares de Portugal.
Muitos desses nobres militares ingressavam no Exército diretamente da vida civil, sem nunca terem vivenciado experiências no campo de batalha. Apesar de serem aptos à manusear armas e espadas e da educação que recebiam, não tinham conhecimentos sobre o comando dos corpos e subordinação.
A vinda de novas tropas para reforçar as forças armadas da América lusa fazem parte de todo o contexto de reestruturação de governo estabelecido por Pombal. Não obstante, a chegada de um novo comandante é, de fato, mais um aspecto centralizador e fiscalizador de suas ordens. O Tenente General Böhm representava não apenas um comandante militar, mas sim, mais uma ferramenta de fiscalização e controle sobre a Colônia e seus habitantes.
Era de grande necessidade defender o porto do Rio de Janeiro, em especial, pois a cidade se tornou capital num momento delicado para Portugal e seus domínios no quadro das relações internacionais; dentro do qual, acirrada a disputa ultramarina entre os demais Estados europeus, colocava-se o problema da preservação dos territórios coloniais, ou da defesa do “patrimônio” luso no ultramar.
O papel primordial da defesa da cidade, além de sua importância para a Coroa foi ressaltado por Pombal onde alega o Rio de Janeiro ser o maior


Empório do Brasil, pois tem este porto as circunstâncias de uma posição e defesa fortíssima e de uma barra incomparável. [...] esta importante dependência unida às já referidas mostra este Governo é a mais importante Jóia deste grande Tesouro. Aqui correm e correrão ao diante os mais importantes negócios, tanto da Coroa, como dos Vassalos; e assim, se deve contar como antemural dessas Províncias, de onde se podem socorrer e animar as outras.


Outrossim, era de grande interesse que se tivesse especial cuidado ao reparo das fortificações e à organização das forças de defesa da capital. No entanto, considerando que sua guarnição não era tão numerosa a ponto de resistir a eventuais ataques, além do fato de seus oficiais não possuírem grande experiência militar – pois, “só se aprende no exercício de muitas e sucessivas campanhas entre o fogo vivo”#, se fazia necessário o envio de tropas como reforço.
Não obstante, o Tenente-General Böhm foi contratado com dupla missão: deveria reorganizar militarmente a cidade e formar um exército para combater os espanhóis. Logo, a sua contratação demonstra a importância desse projeto para Pombal.
Muito diferente do estilo militar português, mais voltado para uma nobreza pouco afeita à disciplina, Böhm possuía características militares da “escola prussiana”, exemplo de disciplina e comando militar.
Teve, por objetivo, baseando-se em seus artigos sobre as campanhas de 1762, regulamentar a vida e a atuação dos militares em várias esferas. No geral eram relativas à subordinação, deserção, fuga no campo de batalha, aos conflitos entre os soldados, ao respeito às sentinelas, ao barulho e à embriaguez no serviço e ao casamento de oficiais e soldados.
Foram, então criados novos regulamentos, bibliotecas de guarnição e fundou-se o Real Colégio de Nobres, para a preparação de oficiais, melhorando-se assim o recrutamento nos diversos quadros, notadamente, os de artilharia e engenharia.
A síntese magistral a atuação do Conde Lippe e de sua reforma é feita por ele mesmo em carta ao Marquês de Pombal em 5 de setembro de 1764


O essencial da obra está feito. Existe um exército. Há leis e artigos de guerra. Um regulamento sobre a organização, composição, disciplina, serviço, instrução, justiça, pagamento e recrutamento da tropa. Estas leis acham-se em execução e são observadas habitualmente em quase três quartas partes dos regimentos. São disposições completas, inquestionavelmente novas, e de espécies diferentes, pelo que poderiam encontrar maiores dificuldades na adoção. Tudo se achava, todavia, em prática e removidos os seus obstáculos. Atualmente, ainda é preciso e sempre necessário, isto é, uma vigilância incansável no fazer cumprir escrupulosamente as últimas leis, regulamentos e artigos de guerra.


Por consequência, pode-se perceber o interesse da Coroa em reformular grande parte dos valores sociais da nobreza, efetuando uma reforma militar que, não só permitiu um maior controle da fidalguia, mas também, possibilitou a ampliação das negociações entre governo central e as elites locais, no que diz respeito à atuação na defesa de seus domínios.
Todos esses elementos estão diretamente relacionados com as novas perspectivas da Coroa, onde tudo estava abundantemente e solidamente sedimentado na teoria política que, até Pombal, não cessou de repetir os tópicos corporativos, descrevendo o poder real como um poder limitado, a constituição como um produto indispensável da tradição, o governo como a manutenção dos equilíbrios estabelecidos.
Nestes termos, todos os acenos da teoria política para um governo baseado na vontade, nomeadamente na vontade arbitrária do rei, eram em geral e enfaticamente rejeitados.

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